Osamu Tezuka e a expansão do animê

 

Autora: Cristiane A. Sato, formada em direito pela Universidade de São Paulo, pesquisadora de mangá e animê, presidente da ABRADEMI – Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações, colaboradora de publicações sobre cultura popular japonesa, mangá e animê desde 1996. Palestrante convidada em eventos diversos no Centro Cultural Itaú, Sesi, Sesc, FAU-USP, Fundação Japão, Embaixada, Consulado Geral do Japão, etc.

Único desenhista japonês a alcançar o título de “mangá no kamisama” (lit. “deus dos quadrinhos”), Osamu Tezuka é um divisor de águas em duas mídias distintas: nos quadrinhos e na animação. Úníco a ter conseguido equilibrar com sucesso o compromisso comercial com a produção artística em ambas as áreas, Tezuka foi uma criança que foi educada sob o regime militarista, viu colegas partirem e morrerem na Guerra e sua juventude coincidiu com a derrota, a rendição e a fase de reconstrução do Japão. Atraído pelos filmes de Chaplin e pelos desenhos animados de Disney, Tezuka começou a desenhar ainda criança, com a ambição de se tornar animador. Em 1947, ele entrou na Faculdade de Medicina de Osaka e ao mesmo iniciou uma carreira de desenhista de mangá, uma vez que os estudos e as limitações materiais e financeiras não lhe permitiam se tornar animador. Apesar de ter se formado como médico em 1952, ele decidiu continuar sua carreira de desenhista. Ainda em 1947, ele lançou sua primeira obra em mangá, “Shin Takarajima” (lit. “A Nova Ilha do Tesouro”), que se tornou um dos maiores sucessos editoriais da época, vendendo espantosas 500 mil cópias. “Shin Takarajima” é, curiosamente, um “storyboard” de animação com balões de falas e onomatopéias, e conta a história estilo filme de ação de um valente menino em busca de uma ilha que guarda um grande segredo. Com esse trabalho, Tezuka iniciou sem querer uma revolução nos quadrinhos japoneses, quando o que ele na verdade desejava era apenas contar uma história em animação. Sua frustração em não poder realizar o desenho animado reverteu positivamente, trazendo ao mangá técnicas copiadas do cinema, ainda hoje muito utilizadas por todos os desenhistas. Em 1959, já consagrado como desenhista de mangá e famoso por séries como “Tetsuwan Atomu” (ing. “Atom Boy”), “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”) e “Ribon no Kishi” (port “A Princesa e o Cavaleiro”), Tezuka finalmente conseguiu sua chance na animação, sendo contratado pela Toei para co-dirigir e fazer o roteiro de “Saiyuki” (port. “Alakazam, o Grande”), longa-metragem para cinema sobre as aventuras de um macaquinho com poderes mágicos que ajuda um príncipe a voltar a seu trono, baseado em um conto chinês. Essa experiência encorajou Tezuka a fundar seu próprio estúdio, a Mushi Production, em 1961. No início dos anos 60, a televisão estava se popularizando nos lares japoneses e Tezuka vislumbrou um mercado ilimitado para animação em larga escala, mas para tornar seu projeto viável decidiu praticar o conceito de “limited animation”, fazendo o mínimo de desenhos possíveis por segundo. A primeira série em animê na TV japonesa foi “Manga Calendar”, realizada pela Otogi Production em 1962, empresa criada em 1955 por Ryuichi Yokoyama, que durante a Guerra participou da produção de “Fukuchan no Sensuikan”.

Entretanto, poucos capítulos foram produzidos e irregularmente levados ao ar. No ano seguinte, em 1963, Tezuka lançou na TV a série “Tetsuwan Atomu”, baseado na série criada por ele mesmo em mangá. Produzida e exibida em episódios semanais por três anos, “Tetsuwan Atomu” foi patrocinada e alcançou bons índices de audiência e, devido a sua regularidade, foi considerada a primeira série de animê de fato da TV japonesa. 1963 foi, aliás, o ano em que a indústria de animação para TV japonesa efetivamente se iniciou. Além de “Tetsuwan Atomu”, outras cinco séries estreiaram e foram exibidas regularmente: “Ginga Shõnen Tai” (ing. “Space Patrol”), série filmada em “stop-motion” com bonecos feita pela Mushi Production; “Ookami Shõnen Ken” (lit. “Ken, o Menino-Lobo”) da Toei Animation; “Eitoman” (port. “O Oitavo Homem”), “Tetsujin 28 Go” (port. “Homem de Aço”) e “Sennin Buraku” (lit. “O Bairro dos Mestres”), todos da produtora Eiken. Observe-se que até hoje, no Brasil, nunca houve cinco séries de animação nacionais no ar na TV no mesmo ano. Em 1964, ao firmar um contrato com a rede de TV norte-americana NBC, Tezuka tornou-se também o primeiro produtor de séries a exportar animês. Rebatizada de “Atom Boy”, “Tetsuwan Atomu” foi ao ar naquele mesmo ano nos Estados Unidos. Logo, outros estúdios japoneses fariam o mesmo com suas séries, exportando principalmente para redes de TV européias. Em 1965, Tezuka lança na TV a primeira série de animê em cores, “Jungle Taitei” (port. “Kimba, o Leão Branco”), versão animada de uma série criada por ele em mangá em 1950, sobre as aventuras de um filhote de leão das savanas africanas, cujo pai, rei dos animais, morre ao salvá-lo, e que agora, com a ajuda de outros animais, vai aos poucos ganhando maturidade, lutando contra caçadores desonestos e resolvendo desentendimentos entre diferentes espécies, preparando-se para se tornar rei dos animais, assim como seus ancestrais. Tendo sido exibida nos Estados Unidos com o título de “Kimba, the White Lion”, esta série criada originalmente por Tezuka é centro de uma controvérsia, na qual os Estúdios Disney são acusados de plágio, por terem lançado “O Rei Leão” como sendo de criação original do estúdio americano. Na área de longa-metragens, Tezuka inovaria ao produzir animês para cinema, direcionados ao público adulto, com temas complexos e conteúdo erótico, como “Senya Ichiya Monogatari” (port. “As Mil e Uma Noites”) em 1969 e o caricato mas histórico “Cleopatra” em 1970. Um de seus temas prediletos, o ciclo de nascimento, vida, morte e reencarnação, além de uma grande preocupação com a ecologia e a relação humanidade-tecnologia, foram objeto de “Hi no Tori” (port “Fênix”) de 1979 e de “Hi no Tori 2772 – Ai no Kosumozoon” (port. “Fênix 2772: A Cosmozona do Amor”) de 1980. A vastíssima obra de Tezuka, que inclui milhares de personagens criados para centenas de títulos só na área de quadrinhos, é também enorme na área de animação, onde fez outras dezenas de séries, longas, curtas e experimentais. Sua história, entretanto, não é formada apenas de sucessos. Em 1973, sua produtora, Mushi Production, faliu. Endividado, Tezuka reergueu-se dedicando-se integralmente ao mangá, só voltando a fazer animação em 1977 e posteriormente abrindo outra empresa, a Tezuka Production, que existe até hoje. Sua morte prematura em 1989 aos 62 anos (num país cuja expectativa de vida masculina ultrapassa os 75 anos), ainda produzindo, desenhando e desfrutando da consagração, levou o Japão ao luto. É difícil dimensionar ainda hoje o grau do impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu em técnica e forma desde então, mas na essência nada de novo criou-se que não tivesse sido antes feito por ele. Questões éticas entre robótica e humanidade, terror para crianças e desenhos eróticos para adultos, a androginia, dramas de vida e morte em histórias aparentemente ingênuas e cômicas – tudo o que hoje caracteriza o animê na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka. Apelidado de “deus do mangá”, sua imortalidade é garantida pelas obras que ele criou em vida, pelo estúdio que leva seu nome, por um museu e um parque temático no Japão e pelos animadores que o sucederam, que conscientemente ou não, seguem a trilha por ele deixada. Da década de 60 para cá, vários estúdios e produtoras foram criados e a quantidade de variedade de séries de TV multiplicaram-se numa velocidade tal, que publicações especializadas foram criadas para permitir que o público pudesse acompanhar o que estava indo ao ar. Entre as “variedades”, tipos de animês que se criaram, existem:

Em meados de década de 80, a produção de animação para TV atingiu seu pico no Japão. Esquemas de produção em massa para as massas fizeram com que, só em Tokyo, se concentrassem mais de dez mil animadores profissionais. Em 1985, uma única produtora, a Toei Animation, chegou a contratar mil animadores na matriz em Tokyo e na subsidiária sul-coreana em Seul. A década de 80 também marca o surgimento do “otakismo”. Um dos muitos tipos de “zoku” (em gíria em português, “tribos”) que surgiram no Japão pós-guerra, os fãs de animês foram denominados genericamente de “otaku”, expressão que vem do hábito em japonês de se referir a terceiros de maneira polida, impessoal, e em alguns contextos de procurar afastar uma pessoa de um círculo de convívio, referindo-se a ela de uma maneira exageradamente formal. É uma gíria em japonês que designa fãs de animê também pelo hábito que estes possuem de ficar muito tempo em casa, isolados diante da TV e de equipamentos, assistindo desenhos ou jogando video-games, absortos a ponto de se comportarem de forma doentia. No ocidente, muitas vezes traduz-se “otaku” como sinônimo de “nerd”, mas apesar de ambos serem vistos humorísticamente como pessoas socialmente inaptas, os “otakus” são conhecedores fanáticos de um determinado assunto incomum ou complexo. A primeira vez que a massiva existência de “otakus” foi identificada, ocorreu no início da década de 80, quando um longa-metragem baseado na série de TV “Uchyuusenkan Yamato” passou nos cinemas japoneses. Foi um fenômeno semelhante ao que ocorreu com as séries “Jornada nas Estrelas” e “Guerra nas Estrelas” no ocidente.

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Nausicäa do Vale dos Ventos

Na produção de longa-metragens, além de Tezuka, novos diretores se destacaram Hayao Miyazaki, antigo estagiário de animação na Toei, fez carreira em outros estúdios trabalhando em séries para TV como “Heidi” e, associando-se com uma grande empresa editorial, formou sua própria produtora, a Studio Ghibli, e vem produzindo alguns dos mais refinados e bem-sucedidos longas de animação do Japão. De seus muitos trabalhos como “Rupan Sansei – Kariostoro no Shiro”(lit. “Lupin III – O Castelo de Cagliostro”) de 1979, “Nausicäa do Vale dos Ventos”) de 1984 e “Tenku no Shiro Rapyuta” (lit. “Laputa, o Castelo dos Céus”) de 1986, destacam-se “Tonari no Totoro” (port “Meu Amigo Totoro”) de 1988 e “Majõ no Takyuubin” (port “O Serviço de Entregas de Kiki”), de 1989, esses dois últimos premiados como Melhores Filmes do Ano pela Academia Cinematográfica Japonesa (algo equivalente à hipótese de um desenho animado ter ganho o Oscar de melhor filme do ano). Lançando em média um longa a cada dois anos, Miyazaki vem fazendo uma sólida carreira, cujos desenhos têm atingido recordes de bilheteria no Japão, como “Kurenai no Buta” (port “Porco Rosso”) de 1992 e “Mononoke Hime” (lit “A Princesa Mononoke”) de 1997. Isao Takahata, que co-dirigiu “Heidi” com Miyazaki, tornou-se sócio do Studio Ghibli. Diferentemente de Miyazaki, que tem desenvolvido aventuras com características de contos-de-fada, Takahata revela preferência por temas mais críticos. “Hotaru no Haka” (lit. “O Túmulo dos Vagalumes”) de 1988, mostra a trágica história de dois irmãos, crianças que num curto período do fim da 2a. Guerra sofrem com a perda súbita dos pais e o abandono de outros adultos. “Omoide Poro-Poro” (lit. “Fragmentos de Lembranças”) de 1991 é a história atual de uma jovem “office-lady”, que durante uma visita a parentes no interior se divide entre ter a típica vida de uma solitária mulher independente de cidade grande ou casar-se e ter uma família na província. Seu trabalho mais popular é “Heisei Tanuki Gassen Ponpoko” (lit. “Ponpoko – A Luta dos Texugos Pela Paz”) de 1994, uma bem-humorada crítica ao crescimento desordenado e anti-ecológico das cidades que destrói o ambiente onde vivem espécies locais que fazem parte do folclore japonês, como os texugos e as raposas. “Ponpoko” bateu nos cinemas a bilheteria de “O Rei Leão” da Disney no Japão, ganhou o prêmio de melhor animação do Concurso Mainichi de Filmes de 94 e um prêmio especial da Academia Cinematográfica em 95.

culturapop9Assim como Tezuka dividia sua atividade entre o mangá e o animê, também o faz o desenhista e diretor Katsuhiro Otomo.Admirador dos quadrinhos para adul-tos europeus e fã de filmes de “yakuza”, Otomo já era um desenhista de mangá consagrado quando ele lançou “Akira” em 1988, animê longa-metragem para cinema baseado na série de mangá de mesmo nome de sua autoria.

Produzido através de uma parceria de várias empresas, “Akira” trouxe às telas uma apurada animação computadorizada em equilíbrio com a animação tradicional, numa aventura futurista, pessimista e catastrófica.

O estilo agressivo de “Akira” deu a Otomo projeção internacional. Seu longa-metragem seguinte, “Memories” (lit. “Lembranças”) de 1995, é uma coletânea de três seqüências independentes entre si; histórias diferentes dirigidas por três diretores diferentes, tendo só a última seqüência, “Cannon Fodder” (port “Bucha de Canhão”) sido dirigida por Otomo. As duas outras seqüências, “Stink Bomb” (port. “Bomba Fedorenta”) e “Magnetic Rose” (port. “Rosa Magnética”), divulgou o trabalho de outros dois jovens diretores, Koji Morimoto e Tensai Okamura, que já vinham fazendo carreira dirigindo séries para TV e foram assistentes de direção de Otomo em outros projetos além de “Akira”, ao ocidente. Se por um lado o crescimento quase sufocante da animação comercial no Japão gerou um mercado nunca antes visto para o animê dentro e fora do país, por outro a produção independente e artística vem sendo mantida, muitas vezes, apenas por iniciativas individuais. Nessa área, destacam-se diretores como Kihachiro Kawamoto, Yoji Kuri, Taku Furukawa, Harugutsu Fukushima, Renzo Kinoshita e sua esposa Sayoko, estes últimos criadores e mantenedores do Festival Internacional de Animação de Hiroshima. Nesta virada de milênio, quando o Japão está reestruturando até o sistema educacional para uma formação mais individualista e humanista, afastando-se ligeiramente dos valores tecnicistas e homogeneizadores que vigoraram até hoje, essas visões intimistas da animação têm sido mais valorizadas do que nunca. Os animês, agora um “produto de exportação” japonês, da mesma maneira que os carros e produtos eletrônicos, trazem características próprias que para ser usufruidas e apreciadas em sua globalidade, dependem cada vez mais de um profundo conhecimento das tradições, crenças, hábitos e valores dos japoneses, mesmo sofrendo adaptações para melhor se adequarem ao público de outros países. Involuntariamente e sem um planejamento prévio ou direcionado para tal objetivo, os animês se tornaram um veículo rápido de divulgação da cultura japonesa. Modismo passageiro ou não, uma análise mais consciente e consistente desse fenômeno precisará ser feita, dentro e fora do Japão.

Bibliografia consultada

Cartoons:

* One Hundred Years of Cinema Animation Bendazzi, Giannalberto John Libbey & Company Ltd, London, 1994
* THE ILLUSTRATED HISTORY OF THE CINEMA Robinson, David e Lloyd, Ann Orbis Publishing Co. Ltd., London, 1986
* MANGA! MANGA! The World of Japanese Comics Schodt, Frederik L. Kodansha International Ltd, Tokyo, 1997
* HISTÓRIA CULTURAL DO JAPÃO – Uma Perspectiva Tazawa, Yutaka; Matsubara, Saburo; Okuda Shunsuke e Nagahata, Yasunori Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, Tokyo, 1980
* THE ENCYCLOPEDIA OF JAPANESE POP CULTURE Schilling, Mark Weatherhill Inc., New York, 1998
* HISTÓRIA DO JAPÃO EM MANGÁ Sato, Francisco Noriyuki; Goulart, Antonio Paulo; Kussumoto, Roberto e Handa, Francisco ACE Saúde, São Paulo, 1995
* TEZUKA OSAMU MANGA 40 NEN Tezuka, Osamu e Tezuka Production Akita Shoten, Tokyo, 1984

Periódicos:

* Revista NEWTYPE (mensal, Kadokawa Shoten, Japão)
* Revista ANIMEDIA (mensal, Gakken, Japão)
* Revista ANIMAGE (mensal, Tokuma Shoten, Japão).