Bomba atômica – genshibakudan

 

A bomba atômica é um ícone da Era Contemporânea. Ela não foi criada pelos japoneses, mas foi no Japão que ela foi pela primeira vez usada contra pessoas, durante a 2ª Guerra Mundial, em agosto de 1945. Desde então a bomba atômica tornou-se símbolo negativo do engenho humano e brinquedo predileto almejado por líderes políticos do mundo, sendo que o povo japonês detém até hoje o trágico recorde de ter sido a única nação a experimentar na carne os efeitos de um bombardeio atômico. O que é a bomba atômica e como ela se incorporou à cultura de um povo é algo que Cristiane A. Sato, colaboradora do Cultura Japonesa, apresentará nesta matéria.

AVISO: esta matéria contém algumas imagens de forte impacto. Recomenda-se ao leitor discernimento ao prosseguir na consulta.

6 de agosto

Na história da humanidade poucas efemérides são tão importantes, ou celebradas com tanta tristeza como a data de 6 de agosto.

Em 6 de agosto de 1945, a primeira bomba atômica feita pelo homem e usada contra a própria humanidade explodiu na cidade japonesa de Hiroshima. Em 9 de agosto de 1945, foi a vez de outra cidade: Nagasaki – a maior comunidade cristã do Japão. Estima-se que 70 mil pessoas morreram na hora ou poucas horas depois das explosões. Outras 130 mil morreram nos 5 anos subseqüentes, em função de ferimentos e doenças causadas pela exposição à radiação. Assim, calcula-se que 200 mil pessoas teriam sido o custo pago pela passagem da humanidade para a Era Nuclear, mas estas são cifras mínimas estimadas. A verdade é que nunca se saberá ao certo quantas centenas de milhares de vidas foram tomadas ou afetadas para sempre com apenas duas explosões.

Todos os anos, no dia 6 de agosto em Hiroshima, e 9 de agosto em Nagasaki, são realizadas enormes cerimônias em memória aos mortos das bombas atômicas, com a presença do Imperador e da Imperatriz. As cidades podem ter sido reconstruídas, mas o trauma é permanente. Cada um dos sobreviventes tem uma história de dor e terror, e uma tristeza que nunca desaparece. Muitos não conseguem sequer falar sobre o assunto, mesmo décadas depois. Os poucos que conseguem, mesmo após tanto tempo, não conseguem evitar a voz trêmula e as lágrimas. Em comum, cada hibakusha (sobrevivente da bomba) tem a esperança de que aquilo que aconteceu com eles nunca mais se repita.

Numa época em que a ameaça de que a tecnologia das armas nucleares caia em mãos de grupos extremistas terroristas, e na qual um crescente número de nações almeja a posse de tal tecnologia, apesar dos já conhecidos enormes riscos e poucos benefícios que a energia nuclear oferece, é essencial relembrar Hiroshima e Nagasaki. Paz mundial não é uma utopia, mas uma necessidade para a sobrevivência da humanidade. O slogan “Hiroshima Nunca Mais” permanece tão atual quanto na época em que foi criado.

Escrever sobre a Bomba Atômica possui dois aspectos distintos, como no filme “Titanic”. Assim, neste artigo, o assunto está dividido em duas partes – uma objetiva e outra subjetiva, como no filme. A primeira parte, de caráter mais técnico e histórico, trata da bomba em si e de detalhes do bombardeio. A segunda parte trata do impacto humano, de histórias e questões dos sobreviventes, e de como a bomba gerou questionamentos éticos e políticos até nossos dias, incorporando-se à cultura contemporânea.

Breve história da bomba atômica

O texto a seguir foi compilado do livro “História em Revista – A Arte da Guerra”, publicado pela Time-Life e Abril Livros em 1993.

“Desde os primeiros anos do século XX, os cientistas sabiam que poderosas forças habitavam o mundo invisível do átomo. Em 1938, dois cientistas alemães conseguiram romper o núcleo do maior átomo da natureza: o do urânio. Nesse processo, houve desprendimento de energia – numa quantidade imensamente maior do que a gerada por reações químicas. (Cálculos subseqüentes indicaram que a fissão nuclear, como o processo de ruptura do núcleo do átomo ficou conhecido, podia produzir 40 milhões de vezes mais energia do que o máximo obtido por meios químicos, inclusive a combustão das bombas convencionais).

Notícias do que os alemães haviam conseguido espalharam-se rapidamente e em breve os físicos da Inglaterra, França, Estados Unidos e Japão engajavam-se em experiências similares. Em 1939, na Universidade de Columbia, na cidade de Nova York, Leo Szilard, refugiado húngaro que abandonara seu país para escapar aos nazistas, demonstrou que a fissão nuclear liberava nêutrons, partículas subatômicas que podem romper o núcleo de outros átomos, liberando ainda mais nêutrons – e assim por diante, em uma reação em cadeia auto-sustentável. “Nessa noite”, afirmou Szilard, “eu soube que o mundo se cobriria de tristeza”.

Entretanto, logo os físicos descobriram que a fissão auto-sustentável só era possível com o U-235, um isótopo que constituía uma ínfima fração do urânio de ocorrência natural, ou com um novo elemento chamado plutônio, que podia ser criado bombardeando com nêutrons o principal isótopo de urânio, o U-238. A obtenção de quantidades significativas de qualquer das duas substâncias propunha um problema incrívelmente difícil à física, à química e à engenharia. Durante os anos da guerra, somente os Estados Unidos dispunham de recursos e de meios científicos (sem contar a capacidade intelectual de dezenas de físicos que haviam fugido ao nazismo) para a tarefa. O esforço americano, conhecido como Projeto Manhattan, custou mais de 2 bilhões de dólares e, em seu auge, empregou mais de 600 mil pessoas, trabalhando sob condições cuidadosamente planejadas para manter o segredo.

Às 5:30 do dia 16 de julho de 1945, uma bomba atômica feita de plutônio foi testada com sucesso no campo de Alamogordo, no Novo México. A centenas de quilômetros de distância, as pessoas acharam que havia ocorrido um terremoto, ou que um meteorito gigante caíra nas proximidades. A luz da explosão poderia ter sido vista até em Marte. No mesmo momento, o presidente Harry Truman estava em Potsdam – nos arredores de Berlim – discutindo a política do pós-guerra com Winston Churchill e Joseph Stalin. Quando foi confidencialmente informado por sua equipe do sucesso da explosão no Novo México, ele referiu-se à bomba como a “maior coisa da história”. Ele tencionava usá-la para pôr fim à guerra com o Japão. (…)

No início da manhã de 6 de agosto, um B-29 que recebera o nome de Enola Gay decolou da ilha de Tinian com uma escolta de dois aviões e voou 2400 quilômetros até Hiroshima, uma cidade com 280 mil habitantes e algumas fábricas de material bélico. O avião aproximou-se a uma altitude de 9450 metros, lançou sua única bomba e afastou-se imediatamente da cidade em uma manobra violenta. Quarenta e três segundos depois, às 8:16:02 horas, hora de Hiroshima, a bomba explodiu, 580 metros acima do pátio de um hospital. A energia liberada equivalia a 20 mil toneladas de TNT. O Enola Gay, que então já se afastara mais de 18 quilômetros do local, foi chacoalhado como uma rolha, quando as ondas de choque o atingiram.

O que aconteceu abaixo da explosão foi a devastação total. Um patologista americano pertencente a uma equipe de investigação após a guerra fez o seguinte relato: “Junto com o clarão de luz houve uma instantânea onda de calor (…) sua duração foi provavelmente inferior a um décimo de segundo, mas sua intensidade foi suficiente para que os objetos inflamáveis mais próximos (…) ficassem em chamas, os postes fossem lançados a 4 mil jardas (3658 metros), o granito se enrugasse, a uma distância de 1300 jardas (1189 metros) de distância”.

A bomba lançada em Hiroshima foi apelidada de Little Boy. Media pouco menos de 3 metros de comprimento, pesava 4 toneladas e foi armada com uma carga de urânio 235. Para impedir uma explosão prematura, ela tinha três detonadores separados. O último detonador foi acionado por radar, quando a bomba estivesse cerca de 580 metros de altitude, altura esta que segundo cálculos provocaria danos máximos à cidade. A bomba lançada em Nagasaki era um pouco diferente da de Hiroshima. Chamada de Fat Man, ela era mais arredondada e um pouco maior que a Little Boy. Media 3 metros e 20 centímetros de comprimento, tinha um diâmetro de um metro e meio, pesava 4 toneladas e meia e tinha uma carga de plutônio 239. A potência da bomba de Hiroshima foi de 13 quilotons (o equivalente a 13 mil toneladas de TNT). Ela destruiu literalmente tudo que havia num raio de dois quilômetros da explosão (a título de comparação, supondo que uma dessas bombas explodisse na cidade de São Paulo sobre a Catedral da Sé, no centro da cidade, a área de destruição total abrangeria os bairros da Liberdade, Cambuci, Brás, Bom Retiro, Bela Vista, República e a região próxima à Universidade Mackenzie). A taxa de sobrevivência no raio de um quilômetro do epicentro da explosão foram de menos de um habitante a cada grupo de mil. Robert Lewis, co-piloto do Enola Gay, referindo-se à explosão, escreveu em seu diário: “Meu Deus, o que foi que nós fizemos?”

Ausências

Quando o assunto é bomba atômica, algumas imagens são iconográficas. Tornaram-se clichês em nossa memória. De imediato vêm à mente o cogumelo de fumaça e as ruínas esqueléticas de um único prédio que permaneceu em pé no centro de Hiroshima, numa paisagem onde tudo mais virou cinzas e escombros que não passam da altura dos joelhos. Curiosamente, não há nessas imagens a presença de pessoas.

Não vincular tais imagens de destruição a pessoas não é um acaso. Durante décadas evitou-se mostrar o que a bomba atômica causou aos habitantes de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo considerando-se o grau de preconceito anti-nipônico que havia no ocidente durante a 2ª Guerra, mostrar as imagens do que as explosões causaram à carne humana, era censurado. Durante anos relatos dos sobreviventes e imagens de restos mortais que se misturaram aos escombros do que antes foram cidades cheias de vida e atividade, cada uma na época com mais de 200 mil habitantes, não puderam ser trazidos à tona na grande imprensa.

Entre os japoneses, durante décadas, as palavras “bomba atômica”, “Hiroshima” e “Nagasaki” foram um tipo de tabu e raramente eram pronunciadas juntas numa mesma frase. Tendo se passado mais de 60 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, logo não haverá mais sobreviventes das explosões para relatar suas tristes experiências, mas o legado permanece através de algo menos visível. As novas gerações de japoneses e seus descendentes aprendem o significado da bomba atômica, antes mesmo de saber exatamente o que ela foi, através de ausências. Permitam-me contar duas histórias individuais.

Yppe Nakashima foi um imigrante japonês que veio viver no Brasil logo que as relações diplomáticas entre ambos os países, suspensas durante a 2ª Guerra, foram retomadas. Ele se estabeleceu em São Paulo, num grande edifício de apartamentos no centro da cidade. Era um artista formado em Kyoto, onde também aprendeu técnicas cinematográficas e animação. Em sua nova pátria Nakashima passou a atuar em publicidade, mas ele tinha um projeto pessoal mais ambicioso: realizar o primeiro desenho animado longa-metragem em cores do Brasil. Meus avós maternos moravam no mesmo prédio em que Nakashima-san morava, e tornaram-se amigos.

Nos anos 60, com recursos limitados, Nakashima-san teve a idéia de recorrer à colônia japonesa para realizar seu longa-metragem animado. Ele não pediu dinheiro, mas mão-de-obra voluntária. Ele publicou anúncios em um jornal da colônia pedindo para pessoas que tivessem alguma aptidão para desenhar que viessem ajudá-lo na produção do desenho. Ele não tinha condições de remunerar seus auxiliares, mas retribuia os colaboradores com hospitalidade e refeições. Aos amigos que não desenhavam, ele pediu ajuda de outras formas. A família de meu avô fez parte de um tipo de mutirãozinho que durou meses, reservando páginas de revistas de fotos em cores, que Nakashima-san depois selecionaria, recortaria e montaria para usar em sua animação. Minha mãe chegou a pintar acetatos para o Nakashima-san, que em retribuição a presenteou no dia de seu casamento com um quadro em aguada, com a vista da cidade que ele tinha da janela de seu apartamento, mostrando o alto dos edifícios da Avenida Paulista no horizonte.

Numa tarde, meu avô me convidou para ir ao cinema para ver “Piconzé” – um desenho que estava sendo anunciado com ênfase nos jornais da colônia, mas do qual mal havia um anúncio nos jornais em português. Fomos a um pequeno cinema, que ficava numa galeria na rua Barão de Itapetininga. Havia pouca gente na platéia. Na volta para casa, andando pelas ruas esvaziadas no fim da tarde, meu avô me comentou, estranhamente entristecido, que o desenho que tínhamos acabado de ver havia sido feito pelo Nakashima-san – uma obra que levou dez anos para ser realizada. E daí ele me contou que o amigo havia morrido fazia pouco tempo. Mesmo para os padrões da época, Nakashima-san faleceu jovem, na casa dos 40 anos. Depois, fiquei sabendo que ele era um sobrevivente de Nagasaki. Ele parecia uma pessoa normal, mas desde a explosão sua saúde tornou-se frágil. Não houve exames ou testes científicos que ligassem a morte dele à radiação – nada havia no Brasil na época para apurar isso. Já em minha infância a expressão “bomba atômica” tornou-se sinônimo de uma assombração que era capaz de perseguir suas vítimas, por mais tempo que se passasse, por mais distante que elas estivessem do local onde a coisa ocorreu.

Em 1984, entrei num cursinho para me preparar para a Fuvest. No segundo dia de aula conheci uma menina de 18 anos, Leiko. Eu e uma menina não-descendente que estava concorrendo a uma vaga em jornalismo nos tornamos colegas dela. A que chegasse primeiro reservava lugares para as demais, uma vez que as salas ficavam lotadas nos primeiros meses de aula. Leiko era afável, mas não era de conversar. Era com certeza a mais séria de nós três. Durante algum tempo, ela freqüentou diariamente o cursinho, e depois começou a faltar um dia ou dois por semana. Quando perguntávamos o que tinha ocorrido, ela apenas respondia que tinha passado mal. Nunca suspeitamos de algo sério. Um dia, ela parou de vir às aulas, mas continuamos reservando uma carteira para ela. Durante duas semanas esperamos que ela voltasse.

Quase um mês após a última vinda da Leiko ao cursinho, o professor de química entrou na sala alterado. Ao invés de “despejar” a matéria de imediato como de costume, ele disse que estava vindo de um funeral de uma menina que estudava em nossa sala: ela. Eu e minha colega tivemos um choque. O professor, que conhecia a família dela, passou a contar a história de uma tragédia familiar. Os pais da Leiko eram sobreviventes da explosão de Hiroshima. Sem seqüelas aparentes e acreditando que não haviam sido afetados pela radiação, tiveram filhos e construiram uma vida na nova pátria. Tudo ia bem, até que no ano anterior o filho do casal, irmão mais velho da Leiko, foi diagnosticado com leucemia e faleceu em poucos meses, aos 18 anos. Um ano depois, a filha também morre, da mesma forma e com a mesma idade que o irmão. Os pais estavam mais do que inconsoláveis – amigos e familiares temiam que eles fizessem algo contra si mesmos. Cientistas afirmam que as taxas de câncer entre os sobreviventes da bomba são “levemente acima do normal”. Fiquei me perguntando como esses cientistas explicariam isto a aqueles pais? Transtornado, naquele dia o professor trocou as regras das equações químicas e as musiquinhas para decorar a tabela periódica por um discurso contra as armas nucleares. Até hoje me recordo da explicação do “efeito foguete”, relatado por mães que tiveram seus bebês arrancados das costas pela força do vento da explosão (as mães japonesas tinham o hábito de carregar os bebês com grandes lenços amarrados nas costas).

Sei que são meras conjecturas, mas não consigo deixar de pensar no que Nakashima-san e Leiko poderiam ter realizado se tivessem tido mais tempo. E no quanto essas mortes prematuras me parecem injustas. Enquanto seu corpo permitiu, ela veio ao cursinho – atitude de quem confia no futuro, tem esperança. Nakashima-san tinha esboços para um segundo longa-metragem animado. Recentemente, “Piconzé” teve seu valor reconhecido ao ser restaurado e exibido pela primeira vez no Japão, no Festival Internacional de Animação de Hiroshima, representando o Brasil.

É desta maneira – por ausências – que muitos japoneses e seus descendentes aprendem o que é a bomba atômica. É algo muito diferente da técnica, fria e científica descrição que a maioria dos livros expõem.

Relatos e imagens

Outra maneira pela qual sabemos o que significa a bomba atômica é pelo relato dos sobreviventes, os hibakusha.

Ao longo de décadas divulgou-se amplamente – talvez para reduzir o desconforto que causa à consciência – que a maioria das vítimas das explosões atômicas morreram instantaneamente. Os relatos de sobreviventes, entretanto, nos leva a questionar tal afirmação.

Cientistas americanos enviados a Hiroshima para analisar os efeitos da explosão em objetos e pessoas calcularam que os que estavam dentro do raio de 1 quilômetro de distância do hipocentro (denominação técnica do local da explosão, também chamado de ground zero – expressão hoje famosa para assinalar o local onde ficava o World Trade Center, destruído no atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York, mas que foi usada pela primeira vez em Hiroshima) teriam morrido de imediato – o que se subentenderia “sem sofrimento”. Isso porque nesta área o calor emitido pela explosão alcançaria a temperatura de 6 mil graus Celsius (uma pista disso foram bolhas formadas em telhas de pedra). De fato, as pessoas que estavam a menos de 500 metros do hipocentro sem qualquer objeto que eventualmente agisse como barreira contra os efeitos diretos da explosão não tiveram qualquer chance.

O mero clarão da explosão desintegrou algumas pessoas. Durante anos uma misteriosa sombra impressa nos degraus que restaram da entrada de um prédio no centro de Hiroshima intrigou os pesquisadores, até que se descobriu tratar-se da sombra de uma pessoa que estava sentada naqueles degraus, desintegrada no momento da explosão. Outras centenas faleceram daquilo que passou a ser comumente chamado de “fervura do sangue” – a altíssima temperatura gerada pela explosão fez tudo o que fosse líquido ferver. No caso do corpo humano, o sangue entrou em ebulição e órgãos internos cozinharam. A morte foi tão instantânea nestes casos que corpos carbonizados de passageiros de bondes foram encontrados exatamente na posição em que estavam – alguns sentados segurando vestígios de bolsas ou pacotes, outros em pé, segurando-se nas barras de apoio. A grande maioria, entretanto, teve tempo suficiente para ter consciência de que iriam morrer, subentendendo-se, obviamente, que houve sofrimento.

Yoshitaka Kawamoto tinha 12 anos quando estudava numa escola primária em Hiroshima, a 700 metros do hipocentro. Teria sido um dia de aula normal, quando todos ouviram o som de um avião se aproximando – o que era estranho, pois as sirenes de alerta não haviam tocado, o que de imediato teria feito os professores evacuar as salas e direcionar os alunos para os abrigos. A criançada curiosa levantou-se das carteiras e correu para as janelas para observar o avião. Kawamoto sentava-se longe da janela, e não conseguiu chegar até ela. Ele acha que no momento do clarão ele estava atrás de uma parede de concreto, que o poupou de queimaduras mais sérias, e quando veio o estrondo e o impacto da explosão, o andar de cima desmoronou. Um calor absurdo o fez sentir como se estivesse cozinhando vivo. Alguns instantes depois, em meio a pó, entulho, choro e gritos de desespero, Kawamoto deu-se conta de que estava ferido (um braço quebrado, estilhaços de vidro pelo corpo e queimaduras), mas estava vivo. Procurou seu melhor amigo, um colega de classe, chamando-o pelo nome. O amigo, muito ferido e cego pelo clarão, o ouvia e tentava ir até onde Kawamoto estava tentando ficar em pé, mas caía ao fazê-lo, provavelmente com a coluna fraturada. Kawamoto percebeu que não apenas seu amigo, mas todos seus colegas estavam na mesma situação, gravemente feridos. Queria ajudá-los, mas eram muitos e ele era o único que ainda conseguia andar. Sentindo que ia morrer, o amigo pediu a Kawamoto que entregasse seu caderno à sua mãe. Kawamoto remexeu no entulho até encontrar o caderno do amigo e fugiu. No pátio da escola, encontrou seu professor de educação física. O homem estava completamente desfigurado, em carne viva, com grandes pedaços da pele desgrudados do corpo, mas Kawamoto reconheceu-o pela voz. Mesmo naquele estado, o professor estava carregando um aluno morto, e lhe ordenava a ajudar a recolher os corpos de outros alunos que estavam espalhados pelo pátio, amontoando-os sobre um carrinho para carregar material. Não houve tempo para fazer muito. Pouco depois, o professor simplesmente caiu morto.

Durante horas, Kawamoto andou pelas ruas de Hiroshima procurando ajuda, mas tudo que ele encontrava era mais mortos, gente queimada, desmembrada e incêndios. A destruição tinha tornado a cidade irreconhecível e ele vagou perdido pelo que havia restado das ruas, até finalmente desmaiar de exaustão. Acordou olhando para um soldado, que lhe explicou que ele havia ficado inconsciente e delirado por dias. Alguns dias depois sua mãe, ilesa por morar na zona rural de Hiroshima, atrás das montanhas que circundam a cidade, o encontrou. Em casa, Kawamoto adoeceu e perdeu os cabelos – a “doença da bomba”. Na época, isso era prenúncio de morte certa. “Se hoje estou vivo, é graças à minha mãe”, contou Kawamoto. “Não sei o que ela me dava, mas lembro-me de que ela saía às 3 da madrugada para buscar uma erva que crescia a uma caminhada de uma hora de casa, com a qual ela fazia um remédio para eu tomar. Não sei se foi essa erva, mas aos poucos eu melhorei. Sem a dedicação dela, eu teria morrido”. Kawamoto foi o único sobrevivente da escola onde estudava.

Assim como muitos hibakusha, Kawamoto procurou reconstruir sua vida evitando as lembranças do dia da explosão. Posteriormente, ele procurou a mãe do amigo, a quem havia prometido entregar o caderno de classe. Infelizmente, Kawamoto perdeu o caderno quando desmaiou no dia da explosão, mas cumpriu o desejo último de seu amigo, de ao menos fazer sua mãe saber que ela estava em seus últimos pensamentos. Kawamoto casou-se mas não teve filhos, temendo que a exposição à radiação causasse danos a seus descendentes. Entretanto, já sexagenário, decidiu enfrentar a dor das lembranças e tornou-se diretor do Hiroshima Peace Memorial Museum. Durante anos ele narrou pessoalmente sua história aos visitantes do museu, diante da maquete que reproduz a cidade em ruínas pouco depois da explosão, indicando com o próprio dedo onde se localizava a escola onde sua geração pereceu.

Nenhum relato entretanto tornou-se mais completo, mais comovente e mais conhecido no mundo inteiro que uma história em quadrinhos. Entitulada Hadashi no Gen (Gen, Pés Descalços), esta narrativa de mais de 800 páginas foi escrita e desenhada nos anos de 1972 e 1973 por Keiji Nakazawa – ele mesmo um sobrevivente da explosão de Hiroshima. Não se trata de uma história em quadrinhos ficcional. “A história de Gen é a minha história; a família dele é a minha”, explica Nakazawa em entrevistas, que até hoje não consegue evitar a emoção e a voz embargada ao dizê-lo. No dia da explosão, Nakazawa perdeu o pai, a irmã mais velha e o irmão caçula, presos nos escombros da própria casa, construída de madeira e que ruiu com a onda de choque. Aos 7 anos, ele presenciou sua família ser carbonizada viva, quando o incêndio que tomou a cidade após a explosão atingiu a casa.

A questão hibakusha

Nem todas as histórias de sobreviventes da bomba são uma sucessão de tragédias. Embora raras, algumas dessas pessoas têm experiências relativamente felizes para relatar, embora as tristes lembranças do que elas viveram no dia da explosão tenham alterado suas vidas para sempre.

Em 1945, Takashi Morita era um jovem soldado mais preocupado em sobreviver do que lutar. Havia se alistado pois no exército ainda havia comida – o resto da população no Japão passava fome com o racionamento. Ele estava em Tóquio em março, quando nos dias 9 e 10 os americanos bombardearam a cidade por horas e 80 mil pessoas morreram. Isso fez com que ele pedisse transferência para sua cidade natal, Hiroshima, que curiosamente se mantinha intacta, poupada dos bombardeios. Ele achou que seria mais seguro voltar para casa.

Após meses de espera, Morita finalmente conseguiu sua requisitada transferência – ele chegou à cidade apenas poucos dias antes do fatídico 6 de agosto. No dia da explosão, ele estava num bonde, com alguns outros soldados a caminho do quartel. Ele havia acabado de descer do bonde, quando sentiu o vento levantá-lo pelo ar e arremessá-lo ao chão a quase cem metros de onde estava. Ele ficou atordoado por alguns instantes, e se recorda de um súbito calor calcinante. Ao olhar para trás, à procura de seus colegas, viu que eles não haviam tido sorte. O bonde do qual havia acabado de sair estava em chamas, e ele achou que o veículo havia explodido. Mas bastou ele olhar ao redor para perceber que algo muito maior havia ocorrido. Havia muita gente ferida e a destruição era grande demais para uma bomba comum. Ele tentou socorrer um menino muito queimado, cujas últimas palavras foram “senhor soldado, por favor, vingue a minha morte”. Infelizmente aqueles eram tempos de guerra, e Morita ainda fica com os olhos cheios de lágrimas ao se recordar do desconhecido garoto. Mesmo sentindo dor nas costas e nuca (mais tarde Morita descobriu que eram queimaduras da explosão atômica), ele se dirigiu ao centro da cidade para ajudar no socorro à população. As cenas de terror daquele dia, mais de 60 anos depois, ainda lhe causam pesadelos. Ele se lembra de ter sentido uma sede anormal e repentinamente desmaiar, vindo a acordar dias depois num hospital de campanha.

Tendo sido exposto à radiação, Morita adoeceu seriamente, perdeu os cabelos, mas diferentemente de muitos sobreviveu. Nos anos 50 decidiu tentar reconstruir a vida no Brasil. Estabeleceu-se em São Paulo, onde trabalhou como ourives e joalheiro. Aposentou-se mas não parou de trabalhar, e abriu duas mercearias especializadas em comida japonesa e um restaurante. Morita casou-se com uma sobrevivente de Hiroshima; teve dois filhos e vários netos. Como todo hibakusha, Morita sempre se preocupa com a própria saúde e a de seus descendentes, e afirma aliviado que todos são saudáveis.

Hoje octagenário, Morita-san é um caso à parte. Lúcido, ativo e bem-humorado, ele costuma dizer que “eu passei por dois dos piores bombardeios da 2ª Guerra no Japão. Não sei se isso é sorte ou azar. Se eu sobrevivi, é porque realmente não era para eu morrer cedo”. Ele é certamente afortunado, mas isso não quer dizer que Morita, assim como todos os hibakusha – nome pelo qual são conhecidos os sobreviventes das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki – não tenham tido difíceis dias seguintes após a bomba.

Diferentemente do que hoje se imagina, as vítimas da bomba atômica não dispuseram de imediato da simpatia ou da compaixão pública. As explosões causaram problemas inéditos na história da humanidade, no campo da política, das relações internacionais, até de ordem social. As seqüelas permanentes das queimaduras radioativas – as quelóides – desfiguraram muitos dos sobreviventes a ponto de serem impedidos de terem uma vida social comum. A exposição à radiação criou um medo generalizado de que descendentes dos sobreviventes viessem inexoravelmente a desenvolver doenças como o câncer e problemas físicos de má formação congênita. A condição de hibakusha levavam muitos a se opor a um casamento e por isso durante décadas os sobreviventes ou tiveram de ocultar o fato, ou se casaram com outro(a) sobrevivente. Em qualquer lugar e cultura, desinformação gera medo, e o medo gera preconceito. Por décadas, principalmente nos Estados Unidos, evitou-se divulgar o que de fato havia ocorrido com as pessoas que estavam em Hiroshima e Nagasaki. O mundo estava ideologicamente dividido pela Guerra Fria, e o governo americano não queria que sentimentos de culpa gerassem movimentos pacifistas que dividissem a opinião pública. Mesmo no Japão – transformado no pós-guerra em país aliado dos Estados Unidos em função de sua posição estratégica no tabuleiro de interesses da Guerra Fria – procurou-se manter a questão hibakusha fora da mídia. Era mais importante mostrar as cidades reconstruídas do que falar sobre as cicatrizes físicas e psicológicas dos sobreviventes.

Os ferimentos e as doenças atípicas causadas pela radiação criaram um desafio para a medicina. Não havia nem conhecimento nem experiência para o tratamento eficaz das vítimas. Logo após a explosão até ossos esmagados dos mortos nas explosões foram usados pelos sobreviventes como medicamentos – o que indica o grau de desabastecimento de remédios e curativos básicos, e o desespero das pessoas na época. A experiência ao longo de décadas tratando dos sobreviventes da bomba, por outro lado, fez com que o Japão desenvolvesse o que hoje é um avançado know-how no tratamento de doenças da radiação. Esse tratamento especializado é prestado gratuitamente aos hibakusha no Japão. Entretanto, tal regra não se aplica aos sobreviventes que emigraram para outros países, como os imigrantes japoneses que vieram para o Brasil. É para estender tal benefício aos hibakusha que vivem no Brasil que Takashi Morita fundou aqui uma associação: a Associação das Vítimas da Bomba Atômica. “Não se trata de um favor ou algo excepcional” – explica Morita – “É um direito que os sobreviventes têm, e é um tratamento que só existe no Japão. Já é difícil para cada hibakusha ter que ir até o Japão, e custear a viagem e a estadia do próprio bolso. Pagar despesas médicas particulares lá é algo impossível”.

O legado cultural nuclear

Por muitos anos, o que ocorreu em Hiroshima e Nagasaki foi ocultado do grande público. Num primeiro momento, o governo japonês da 2ª Guerra ocultou os bombardeios atômicos do povo japonês, com a distorcida prioridade de manter o “moral popular e das tropas elevado”. Num segundo momento foi a vez do governo americano, logo após a rendição do Japão, pelas também distorcidas razões e estratégias da nascente Guerra Fria. Em qualquer tipo de guerra, a ética e o humanitarismo são as primeiras vítimas.

Relatos superficiais do grau de destruição causado pelos bombardeios atômicos geraram um sentimento generalizado de medo, que se acentuou a partir de 1949 quando a União Soviética conseguiu fazer explodir sua primeira bomba nuclear num teste, iniciando uma corrida armamentista bipolarizada. A restrição de informações, entretanto, não fez com que o medo se dissipasse – muito ao contrário. Em 1954, um teste de armas termonucleares americanas no Atol de Bikini chegou à potência de 15 megatons (o equivalente a 15 milhões de toneladas de TNT, ou cerca de 1.150 bombas de Hiroshima). A sensação de que a humanidade era capaz de cometer um haraquiri nuclear a qualquer instante, dependendo do estado de espírito de líderes políticos confortavelmente instalados em bunkers, não era infundada.

A mera possibilidade de uma hecatombe nuclear gerou um medo que se instalou na cultura da época, e a censura sobre o assunto na mídia – fosse ela auto-promovida ou não – fazia com que o tema fosse tratado apenas de forma poética ou através de analogias. É curioso observar que assunto tão sério foi tema de vários filmes de baixo orçamento do então engatinhante gênero ficção científica. Popular, mas tratado com desdém pela crítica especializada, este gênero de filmes refletiu o medo nuclear da época e produziu um ícone. “Godzilla” (em japonês, “Gojira”), filme de 1954 dos estúdios Toho, foi protagonizado por um monstro gigante gerado pelos testes em Bikini, que chega ao Japão destruindo tudo pelo caminho com seu enorme rabo e matando pessoas com seu bafo radioativo, numa analogia aos bombardeios atômicos. Em 1959, “Hiroshima Mon Amour”, produção franco-japonesa, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e tornou-se um sucesso internacional tratando de forma séria mas poética a questão do medo nuclear, apresentando imagens dos sobreviventes da bomba atômica como pano de fundo de um filme romântico.

Entre os japoneses, entretanto, há um traço marcante resultante da experiência atômica: o caráter pacifista. A consciência de que a energia nuclear traz mais problemas que benefícios fez do país uma das poucas nações-membro do seleto grupo dos mais ricos do mundo capaz de desenvolver armas nucleares, mas que se abstém de fazê-lo. Um dos benefícios de tal opção está no fato do Japão não apenas ser a 2ª maior economia do mundo, mas também ser um dos países com a melhor distribuição de renda do globo. O dinheiro que seria gasto com armas simplesmente foi usado em propósitos mais positivos. Mágoas à parte, os hibakusha são sinceros quando dizem “que sejamos os únicos”. E que nunca mais ocorra o que ocorreu em Hiroshima e Nagasaki.

Aos que quiserem se aprofundar no assunto

O site Cultura Japonesa recomenda:

Gen, Pés Descalços“, publicado pela Conrad Livros. O impressionante grau de detalhamento na descrição do que ocorreu no dia da explosão atômica em Hiroshima e como foi a vida dos hibakusha faz a descrição que Dante fez do inferno parecer ingênua, provando que a realidade provocada pela mão do homem pode infelizmente sobrepujar a mais terrível ficção. Trata-se da auto-biografia do autor, Keiji Nakazawa, na forma de história em quadrinhos, que tornou-se um das mais populares obras pacifistas internacionais de nossos tempos. Leitura obrigatória. Pode ser adquirido nas livrarias Cultura, FNAC, Nobel, Saraiva e Siciliano.

Cosmos“, publicado pela Francisco Alves. Uma das obras mais famosas do célebre astrônomo Carl Sagan, responsável pelos projetos Mariner, Viking e Voyager da NASA, premiado com o Joseph Priestley por “relevantes contribuições ao bem-estar da humanidade” e com o Pulitzer de Literatura. O capítulo XIII do livro, “Quem Responde Pela Terra?”, é básico para os que querem compreender a questão nuclear e a importância do desarmamento desde os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. Apesar de escrito em 1980, o livro permanece atual. A edição em português encontra-se esgotada, mas pode ser eventualmente encontrada em sebos. A edição original em inglês pode ser adquirida via internet, através da Amazon Books.

Hiroshima in America: Fifty Years of Denial“, publicado pela Grosset-Putnam. Não possui tradução para o português. Os autores do livro, Robert Jay Lifton e Greg Mitchell, defendem a tese de que os Estados Unidos sempre se negaram a lidar com as conseqüências humanas que a bomba atômica causou a Hiroshima, e que tal postura encorajou outros “encobrimentos” e escândalos históricos, como o Vietnam, o caso Watergate e o caso Irã-contra. De acordo com o livro, “desistir de nosso direito de saber mais sobre Hiroshima e sobre armas nucleares em geral contribuiu para nossa gradual alienação de todo processo político”. Pode ser adquirido via internet, através da Amazon Books.

Hiroshima: Why America Dropped the Atomic Bomb“, publicado pela Little-Brown. não possui tradução para o português. O autor Ronald Takaki, historiador da Universidade Berkeley, afirma que Harry Truman, presidente dos Estados Unidos na época do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, ordenou o ataque por razões bem diferentes do decorado jargão de que ele queria “encurtar a guerra e poupar a vida de soldados americanos”. Motivos pouco altruístas, racismo, objetivos eleitorais e vaidades pessoais teriam levado Truman à decisão de usar as bombas atômicas. Pode ser adquirido via internet, através da Amazon Books.

Na tevê paga, o canal Discovery Channel freqüentemente reprisa o ótimo documentário HIROSHIMA. É preciso consultar na grade de programação ou com a operadora quando o documentário virá ao ar novamente.

30/julho/2006

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  3 Responses to “Bomba atômica – genshibakudan”

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  2. […] Cristiane A. Bomba Atômica – GENSHIBAKUDAN. Acesso em: 18 fev. […]