Cristiane A. Sato

 

Autora de JAPOP: O Poder da Cultura Pop Japonesa

Colaboradora do site www.culturajaponesa.com.br, a japanóloga Cristiane Sato acaba de lançar um livro chamado “JAPOP: O Poder da Cultura Pop Japonesa”. Nesta entrevista exclusiva, ela nos fala um pouco da sua carreira e do assunto de seu livro.

Soube que você é formada em Direito e é advogada; aparentemente isso não tem muito a ver com o tema do seu livro. O que é que te levou a estudar cultura japonesa?

É curioso, mas foi o Direito que fez eu me interessar pela cultura japonesa. Não sei se as coisas ainda são assim, mas quando entrei na faculdade salientava-se que nós, estudantes universitários, tínhamos um dever social, que o diploma não era só um instrumento para usarmos em benefício de nossas próprias carreiras, e que a gente tinha que se dedicar a alguma causa social num país tão necessitado como o nosso. Fui estagiária no Centro Acadêmico XI de Agosto, que prestava assistência jurídica à população carente, e na época houve uma iniciativa similar dentro do Bunkyô (Soc. Bras. de Cultura Japonesa), de atendimento jurídico gratuito à comunidade nipo-brasileira de baixa renda. Embora essa iniciativa não tenha durado, essa experiência me fez ver que o choque cultural estava na raiz de muitos problemas enfrentados por aquelas pessoas, e foi isso que me levou a querer estudar a cultura japonesa. Quando eu ainda estava na faculdade, em 84, participei da fundação da ABRADEMI – a Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações, que é uma entidade que inovou ao pesquisar e difundir a cultura pop japonesa, principalmente manifestações ligadas ao mangá e ao animê. Depois, quando me tornei presidente da ABRADEMI em 96, coordenei a MangáCon por cinco anos, que foi o primeiro evento relacionado à cultura pop japonesa no Brasil. Já na época, eu tinha idéia clara do que era a cultura pop japonesa e do que ela representava no contexto internacional. No exterior o pop japonês é bastante estudado e já existe uma ampla literatura a respeito, mas no Brasil o assunto ainda é visto de modo muito limitado, até menosprezado.

Como assim? Mesmo com tantos mangás e animês que a gente vê nas bancas e na televisão?

No fim dos anos 90 animês e mangás estavam começando a se tornar amplamente conhecidos por adolescentes no Brasil, e muitos jovens começaram a se interessar em estudar japonês por serem fãs de mangás ou de animês. Mas as escolas e cursos de japonês não refletiam nada do que esses jovens conheciam através dos mangás, dos animês e da internet. Percebi que uma série de distorções e mistificações começaram a surgir a partir dessa situação de coisas. Muitos otakus começaram a achar que o ápice da cultura japonesa eram os mangás, e que os japoneses agiam e se vestiam como os personagens dos videogames e animês. Por outro lado, haviam professores de japonês que embora tivessem fluência no idioma, revelavam um conhecimento limitado dos costumes, da cultura, da filosofia e da história do Japão, e mostravam-se desatualizados com as transformações que estão ocorrendo no Japão. Enfim, os alunos superestimavam mangás e animês, e professores menosprezavam a cultura pop japonesa. Eu achava isso estranho, pois quando estudei outros idiomas, na Aliança (Francesa), no Alumni e no Linguistik, vi que essas escolas usavam elementos da cultura pop de seus países como instrumentos de ensino, e os professores mostravam-se bem informados e motivavam os alunos a ler revistas, ouvir músicas e ver filmes desde o início do curso. Essa situação de coisas me fez perceber que havia uma lacuna de informações sobre um tema que já é claro e bastante estudado no exterior, mas que no Brasil ainda é confuso e incompreendido.

O que é que você define como cultura pop japonesa?

A cultura pop japonesa é o conjunto das manifestações culturais industrializadas produzidas no Japão. É um universo amplo e um pouco complexo. A coisa não se limita aos mangás, aos animês e ao J-Pop, mas se estende à tevê, ao cinema, à moda e ao comportamento. A cultura pop japonesa mistura história com modernidade e tradições com modismos, e é isso que atrai a atenção do mundo para o país. O Japop (contração de “Japanese pop culture”), que é a palavra que se usa atualmente a nível internacional como sinônimo de cultura pop japonesa, é retrato da própria sociedade japonesa contemporânea, e achei que era hora de haver um livro sobre o assunto.

O seu primeiro contato com esse tema se deu através dos mangás?

Olhando para trás, percebo que minha própria infância foi meu primeiro contato com o universo da cultura pop japonesa. Eu fui criança entre as décadas de 60 e 70; naquela época convivi muito com meu avô e foi ele quem me ensinou a ler japonês através de mangás, me levava às livrarias e às matinês no antigo cine Niterói. Minha avó era modista, adorava música e era fã da Misora Hibari. Não foi por um aspecto ou outro, mas foi pelo pacote completo que na infância fui exposta ao pop japonês. Mas eu considero fundamental a oportunidade que tive mais tarde de conhecer o Japão através de uma bolsa de estudos, concedida pela Associação de Intercâmbio Brasil-Japão em 1987. Eu presenciei a “explosão” da cultura pop japonesa no auge da bolha econômica, e pude conhecer aspectos do Japão que ainda hoje pouca gente tem acesso. Considero o livro uma forma de retribuição ao meu avô e às pessoas que fizeram a Associação de Intercâmbio existir, pois sem eles eu nem teria concebido o livro.

Como você vê o sucesso da cultura pop japonesa em outros países?

Quando a gente fala de cultura pop, falamos de influência cultural em função de influência econômica. Em 1989, quando a Guerra Fria foi dada como oficialmente encerrada, os Estados Unidos emergiram como a única superpotência bélica e econômica do mundo, e sua hegemonia como centro de influência cultural tornou-se praticamente indiscutível. Em vários países da Europa ocidental, onde existe um certo grau de valorização à diversidade cultural, como a França, a Itália e a Espanha, quando tornou-se clara a preponderância americana, o pop japonês passou a ser visto como uma alternativa mais atraente e menos sufocante que a onipresente cultura ianque. Uma crescente parcela da juventude européia passou a ver a cultura pop japonesa como um exemplo a ser seguido, por ter sido o Japão o único país no pós-guerra a conseguir quebrar a hegemonia norte-americana na exportação cultural. É importante observar que o Japão, além de segunda maior economia do mundo, é o único país-membro do G-8 cuja cultura não se baseia no raciocínio judaico-cristão.

Como assim?

Existe no mundo ocidental uma idéia pré-concebida de que apenas as nações caucasianas de tradição judaico-cristã podem ser consideradas plenamente industrializadas, desenvolvidas e ricas, e por isso o Japão é visto como algo exótico. O Japão é a prova de que uma nação não-caucasiana, e que se segue um raciocínio diferente da tradição judaico-cristã, pode se tornar industrializada, desenvolvida e rica sem abrir mão de sua herança cultural, e parece que isso é visto como algo inspirador por muitos jovens, inclusive na Ásia e na América Latina. Por isso não me parece ser uma mera coincidência que o pop japonês também tenha muitos apreciadores em países como a Coréia do Sul, Taiwan, a China e a Índia.

Você acha que o animê veio para ficar?

Acho que não só veio para ficar como virou uma regra. Até produtoras européias, canadenses e americanas hoje fazem desenhos com olhos grandes e cabelos pontudos imitando desenhos japoneses. Em 1984, quando a ABRADEMI foi fundada, tínhamos uma enorme dificuldade só para explicar o que era um mangá, pois o povo não tinha a menor idéia do que era a coisa. Só que embora os mangás e animês não fossem tão famosos como são hoje, a atividade antes era vista como arte. Os desenhistas eram tratados como artistas e ocupávamos espaços amplos, até em galerias e museus. Agora a situação é completamente oposta. Hoje no Brasil há praticamente um evento de animê a cada fim de semana alternado. De tão conhecidos, os mangás e animês geraram um fenômeno que passei a chamar de “efeito carne de vaca”. Isso porque mangá e animê virou algo comum tanto quanto a carne de vaca, embora para parte da população no Brasil, seja por questões culturais ou financeiras, mangás e animês ainda não são acessíveis. Assim como na própria carne de vaca tem partes que a gente não come todos os dias por serem muito caras, como o filé mignon, tem muita gente que apesar dessa popularização toda ainda não conhece mangás e animês. O lado positivo da popularização dos mangás e dos animês é que o assunto tornou-se efetivamente bastante conhecido, o que é característico de fenômenos de cultura pop, mas o lado negativo foi que a atividade deixou de ser valorizada como arte, justamente porque se tornou uma presença comum no nosso dia a dia.

No seu livro, o capítulo sobre moda ocupou um espaço grande. Entretanto, pelo menos no Brasil, temos poucas grifes japonesas. Como é que a difusão da moda japonesa ocorre aqui?

As pessoas em geral confundem moda com modismos. Os modismos estão relacionados com o microcosmo da moda, com os detalhes passageiros que a indústria do vestuário divulga como a tendência do momento, como a cor que vai predominar na próxima coleção, a largura das gravatas do ano ou a altura do cós das calças. A moda é um fenômeno mais amplo, pois ela abrange não apenas as mudanças no conceito e na forma do vestuário, mas as transformações de hábitos e valores de uma sociedade. No Brasil, o máximo que se conhece sobre as grifes japonesas são alguns perfumes assinados por estilistas japoneses, como Kenzo e Issey Miyake. É uma pena, porque o trabalho dos estilistas japoneses nos últimos 40 anos vêm mudando nossa forma de vestir de tal modo, que até hoje é difícil dimensionar a amplitude da influência que eles exercem na moda internacional, e é curioso que a maioria das pessoas mal tem idéia disso. A última coleção da Dior, desenhada pelo John Gagliano, usou formas e temas japoneses. Mas acho que a principal fonte de influência de moda do Japão para o ocidente hoje não são os desfiles, e sim as tendências que surgem no “street fashion” japonês. No Brasil há muitos elementos de moda japonesa que vêm sendo adotados pelas brasileiras, como as sandálias com saltos plataforma de mais de 10 centímetros, e as sobreposições de camisetas, e de saias e vestidos sobre calças, que surgiram nos anos 90 no “street fashion”. Uma década atrás seriam considerados ridículos aqui, mas agora estão na moda. O que me impressiona mesmo é ver gente na rua adotando de corpo inteiro a mesma estética e atitude que os jovens japoneses. Já vi adolescentes francesas andando de quimono e de “sailorfuku” (uniforme escolar japonês) nas ruas de Paris. Roupa mesmo, não “cosplay”. Neste ano blusas “cache-coeur” com mangas de corte reto, imitando quimonos, estão aparecendo em algumas lojas brasileiras.

Você coloca o teatro Takarazuka como um fenômeno Japop. Por que o Takarazuka, e não o teatro Butô?

A expressão “pop” é contração da palavra “popular”, e essa popularidade é medida através de alguns critérios objetivos, números. Dados de vendas, de bilheterias, de audiência, e de durabilidade no mercado costumam indicar o que é um fenômeno pop ou não. O teatro Butô é um movimento alternativo nas artes performáticas, que atraiu mais atenção no exterior que no Japão devido a apresentações em festivais de dança. Em que pese ser uma importante manifestação cultural de vanguarda, apresentações de Butô não atraem multidões de espectadores pagantes no Japão. Já o Takarazuka é uma grande trupe que possui três teatros próprios no país, cinco elencos regulares, faz turnês nacionais, e os ingressos para suas apresentações são caros e disputadíssimos. Por ano, o Takarazuka se apresenta para quase um milhão de espectadores. Apesar de tanto o Butô quanto o Takarazuka terem surgido no Japão do século XX, essas formas teatrais pouco têm em comum. Para melhor visualizar as diferenças entre ambas, podemos comparar o Takarazuka a um musical como “Les Misérables” ou “O Fantasma da Ópera”, enquanto o Butô seria uma peça no circuito Off-off-Broadway.

Pelo livro, você dá a entender que a explosão do Japop a nível internacional aconteceu devido ao forte esquema de midia que há no Japão. Você acha que esse tipo de coisa poderia acontecer com a cultura brasileira?

Comparando com as corporações americanas ligadas à distribuição de filmes, músicas e quadrinhos, a mídia japonesa é sólida no Japão, mas nem tanto a nível internacional. O que na verdade deu força ao pop japonês foi o momento histórico no qual os fenômenos pop ocorreram no Japão. Até os anos 90 as mídias eram menos variadas, e todas as pessoas estavam ao mesmo tempo expostas aos mesmos fatos, informações e formas de entretenimento. Por isso o impacto dessas manifestações culturais era gigantesco, porque a população como um todo era afetada. Nos últimos 15 anos, a evolução tecnológica causou uma fragmentação das mídias, e por tabela, uma redução do impacto, da influência da cultura pop. Hoje tudo é multimídia. A dispersão virou uma característica das gerações mais jovens. Ao invés de uma cultura universal, que era o que os gurus da informática diziam que iria ocorrer com a globalização e com a popularização da tecnologia, o que de fato está ocorrendo é o oposto. As pessoas estão culturalmente se “apanelando” em tribos de acordo com interesses e gostos específicos, e isso é um problema. Ninguém mais lê, ouve ou assiste de tudo um pouco, mas lê, ouve e assiste muito e quase só aquilo que gosta. Essa é a razão de muitas empresas preferirem contratar pessoas que revelem uma formação mais ampla e genérica para altos cargos administrativos, porque não se confiam postos de liderança a “tapados”. Daí que daqui pra frente dificilmente, por exemplo, um programa de tevê vai conseguir influenciar uma geração inteira a nível mundial, como aconteceu em décadas anteriores. Por sorte, o Japão conseguiu criar uma forte cultura pop própria e tornar-se influente antes da fragmentação das mídias. Para ser exportável, o pop precisa primeiro ser sólido em casa. Infelizmente não acho que o Brasil conseguiria repetir o que o Japão conseguiu fazer. Atualmente já não há quase espaço para uma produção nacional que consiga competir no próprio mercado brasileiro com a produção estrangeira. Veja a própria área de quadrinhos, completamente tomada por DC, Marvel, Disney e até pelos mangás japoneses. Excetuando Maurício de Souza, não há quadrinhos brasileiros nas bancas.

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