mar 172020
 

O mundo tratou de esquecer, mas 100 anos atrás, um vírus parecido com Covid-19, batizado de Gripe Espanhola, varreu o mundo atingindo quase 27% da população e matando mais do que a Primeira Guerra Mundial

A gripe espanhola foi uma pandemia que durou de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, e que pode ter matado entre 17 e 50 milhões de pessoas depois de contaminar mais de 500 milhões de pessoas. Assim, como o coronavírus, é um vírus do tipo Influenza A do subtipo H1N1.

Trabalhadores chineses na base militar britânica em 1917. Foto: John Warwick Brooke – Imperial War Museums England

Embora tenha o nome de Gripe Espanhola, sua origem é desconhecida. Como surgiu durante a Primeira Guerra Mundial, recebeu o nome de “espanhola” pelo fato da Espanha não ter participado do conflito e ela divulgou com bastante destaque a nova doença, enquanto a imprensa de outros países, preocupada em esconder a verdade de seus habitantes em tempo de guerra, preferiu ficar quieta.

A gripe foi registrada pela primeira vez no acampamento militar de Fort Riley, Kansas, Estados Unidos, no dia 4 de março de 1918 e de lá teria embarcado para a Europa junto com as tropas. Em países diretamente envolvidos com a guerra é difícil esperar que os dados de uma gripe sejam registrados de forma correta e na hora certa. Alguns estudiosos afirmam que a gripe teria se originado na China porque 140 mil trabalhadores chineses foram contratados pela Inglaterra e pela França, a partir de agosto de 1917, para trabalharem nas áreas de conflito em trabalhos pesados. Com a Europa em guerra, os chineses viajavam pelo Pacífico ou passavam pelo Canadá, de onde seguiam de trem até o porto e então levados pelo navio para Europa em condições insalubres.

Condutor do bonde recusa passageiro sem máscara em Seatle nos Estados Unidos, 1918. Autoria desconhecida.

Sabe-se que a doença na Europa foi registrada, primeiro nos campos militares franceses, britânicos e americanos na França, em abril de 1918. Em maio, a gripe chegou à Grécia, Portugal e Espanha, e em junho, Dinamarca e Noruega foram atingidos. Em agosto, a doença atingiu os Países Baixos e a Suécia. A Itália em guerra também registrou vítimas. Estima-se que 466 mil italianos perderam a vida pela pandemia. Todos os exércitos da Europa sofreram baixas com a Gripe Espanhola, tanto é que se argumenta que o conflito terminou antes do previsto por falta de soldados para lutar.

A Gripe Espanhola no Brasil

No Brasil, as primeiras notícias da pandemia circularam em agosto de 1918, e ganhou mais impacto em setembro, quando tropas brasileiras foram contaminadas no Norte da África. O problema chegou ao Brasil com o navio Demerara, proveniente da Europa, que aportou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, chegando à Amazônia em novembro de 1918. Como o transporte na época era realizado em navios, o grande foco de contaminação foram os portos, que recebiam essas embarcações.

Nos períodos em que a gripe mostrava maior periculosidade, foram tomadas medidas para se diminuir as chances de contaminação. Assim, como acontece hoje com o coronavírus, escolas foram fechadas, assim como as salas de cinema e teatro, além de bares e casas noturnas. Festas populares e partidas esportivas foram proibidas. Durante muitos meses, a vida social foi bastante restringida para o bem de todos. Assim, na primeira grande festa popular permitida, no Carnaval de fevereiro de 1920, houve um exagero em termos de euforia, e se a gripe já não assustava mais, “houve uma liberação dos usos e costumes’, contam os jornais da época.

Carmen Miranda gravou “E o mundo não se acabou”, que lembra da Gripe Espanhola

Embora não haja dados oficiais completos, estima-se que 35 mil pessoas morreram por causa dessa pandemia, sendo 12.700 no Rio de Janeiro, 6.000 em São Paulo, 1.316 em Porto Alegre, 1.250 em Recife e 386 em Salvador.

O compositor Assis Valente compôs e a cantora Carmem Miranda gravou, 20 anos após o início da pandemia, a música “E o Mundo Não se Acabou”, mostrando com bom humor o terror apocalíptico que tomou conta da Nação.

Dois nomes famosos dentre as vítimas da Gripe Espanhola são o do então presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves, que faleceu em 19 de janeiro de 1919, e o da educadora Anália Franco, que perdeu a vida um dia depois do presidente.

O Japão e a Gripe Espanhola

Causou surpresa o anúncio do Primeiro Ministro Shinzo Abe, no dia 27 de fevereiro de 2020, de que as escolas antecipariam as férias escolares. O Japão foi o primeiro a recomendar o fechamento de todas as escolas do país. Na verdade, o que pesou na decisão de Abe, depois criticada pela oposição, foi o precedente da Gripe Espanhola um século antes.

Estudantes se protegem com máscaras da Gripe Espanhola em 1919. Foto: Mainichi Shimbun

O diário Kyushu Nippo, de 25/10/1918 noticiou a Gripe Espanhola vindo do Sul da África, que teria se espalhado na Península Malaia (Malásia e Singapura) causando milhares de mortos. A matéria fala do risco do vírus chegar ao Japão através dos navios de carga que aportam naquela região e diz que as autoridades não conseguirão evitar o contágio. Menos de 10 dias depois, o jornal Fukuoka Nichi Nichi Shimbun noticiou o crescente fechamento das escolas primárias, ginasiais e colegiais da cidade de Fukuoka por causa do surto da gripe. Fala-se em 5.500 internados só naquela cidade. A província de Fukuoka, entretanto, registrou o primeiro paciente da Gripe Espanhola no dia 10 de outubro de 1918 numa escola colegial feminina. E em um mês, o número de vítimas subiu para 569.960 e 4.399 tinham perdido suas vidas naquela província.

A pandemia também estava prejudicando a economia. O próprio jornal de Fukuoka, numa das edições, pede desculpas aos leitores por estar circulando com apenas oito páginas, por falta de papel, porque os funcionários da indústria não estavam comparecendo por causa da gripe. Pelo mesmo motivo, menos trens estavam em circulação, a indústria de carvão deu férias coletivas, e o serviço telegráfico e de correio estavam com muito atraso nas entregas. Também devido à gripe, o gelo foi bastante consumido, sendo que os comerciantes venderam mais gelo naquele inverno do que no verão todo.

O governador da província de Fukuoka, Tomegoro Taniguchi, anunciou, no dia 6 de novembro de 1918, recomendações para diminuir a proliferação da doença. 1 – Deve-se guardar a distância mínima de 1,2 metros em relação a outra pessoa ou usar uma máscara. 2 – Se tiver que tossir ou espirrar, cobrir a boca e o nariz com a manga da camisa. 3 – Recomenda-se não viajar nesse período a não ser que seja imprescindível, porque se pode contaminar na pousada ou mesmo no trem. 4 – Devem-se evitar locais de grande concentração de pessoas. 5 – Mesmo nunca casa sem infectados deve-se deixar as janelas abertas para a circulação de ar. 6 – Travesseiros e cobertores devem ser estendidos ao Sol diariamente. Todas essas recomendações parecem iguais aos do novo coronavírus.

Hospital provisório em Kansas para atender a pandemia, 1918. National Museum of Health and Medicine

Dois anos depois, em 1920, o vírus foi perdendo a força, mas o número real de vítimas ainda é uma incógnita, pois houve uma movimentação muito grande de pessoas dentro e para fora do Japão, pelo retorno de tropas da Primeira Guerra Mundial, pela saída de novas tropas para Sibéria em 1919 e pelos emigrantes que deixaram seu país em busca de uma vida melhor. Segundo o jornal Japan Times, estudiosos da atualidade estimam que 470 mil japoneses perderam a vida pela Gripe Espanhola ou pelas complicações paralelas como a pneumonia. E pelo menos 200 mil japoneses que moravam na Coréia ou Taiwan, que faziam parte do império japonês, também teriam sido vítimas fatais do vírus.

A população jovem foi a mais atingida pela Gripe Espanhola. No Japão, observou-se um maior número de vítimas masculinas entre 21 e 23 anos de idade no início da pandemia em 1918, daí o motivo de fechar as escolas. Em 1920, as vítimas estavam em maior número entre 33 e 35 anos. Já entre as mulheres, muitas estavam na faixa de 24 e 26 anos em todos os anos.

Os japoneses sempre usam máscaras de proteção

Poster da campanha pela utilização da máscara em transportes coletivos, em 1919. Instituto Nacional de Saúde Pública do Japão.

As máscaras para uso cotidiano surgiram no Período Meiji. No início eram feitas de malha de arame de latão com um tecido como filtro e eram usadas principalmente para proteção contra poeira. No Japão é comum as pessoas sofrerem de “kafunsho”, que é a alergia ao pólen de plantas e árvores. Cedro, cipreste e até o arroz solta o pólen, que voa com o vento e pode desencadear o “kafunsho”, geralmente entre os meses de fevereiro e maio, quando muitas pessoas saem de suas casas com uma máscara.

A máscara passou a ser largamente utilizada por causa da pandemia da Gripe Espanhola, e até havia recomendação das autoridades para que se fizesse uso da máscara em transportes coletivos. Depois, com o advento de materiais mais leves, elas foram aperfeiçoadas. Em 1934, com o surto de uma gripe, as vendas de máscaras dispararam. E assim, até hoje, todos usam máscaras, não para se proteger de uma gripe, mas em respeito aos demais, para não contaminar uma outra pessoa, sendo uma espécie de etiqueta social.

Num artigo publicado em maio de 2019, portanto bem antes de conhecer a epidemia do novo coronavírus, o jornal Japan Times recordava a triste passagem da Gripe Espanhola pelo Japão um século atrás, e que não havia meios de tratamento na época. Entretanto, o artigo lembra que o único meio de deter a propagação da doença foi, sem dúvida, o grande esforço da comunidade ao usar máscaras, evitar aglomerações e reduzir viagens.

“Num mundo interconectado, o vírus viajará o mundo de avião e estará em todos os lugares antes mesmo de sabermos da sua existência. As autoridades precisarão fechar os aeroportos, paralisar trens e transportes públicos para conter a crise em caso de um novo surto como o da terrível Gripe Espanhola”, diz o artigo.

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  6 Responses to “Coronavírus, a Gripe Espanhola, o Brasil e o Japão”

  1. Muito grata pelo ótimo estudo: foi enriquecedor conhecer.

  2. Gratidão pela ótima postagem!!
    Erro de computador, que fica tentando corrigir:
    “A gripe espanhola foi uma pandemia que durou de janeiro de 1918 a dezembro de 2020 (seria 1920) “…

  3. Nas 2 vezes que escrevi, aparecia a data 2020 na primeira frase do texto (“A gripe espanhola foi uma pandemia que durou de janeiro de 1918 a dezembro de 2020, e que pode ter matado entre…”), donde me gerou o desejo de colaborar. Favor desconsiderar os comentários anteriores.
    Gratidão pelo ótimo estudo!!!
    Teruko Okagawa Monteiro, Rio de Janeiro

    • Olá, Teruko-san. Na correria acabamos publicando errado, mas nossos amigos avisaram e pudemos arrumar. Muito obrigado por avisar!

  4. Uau, excelente artigo, muito rico em detalhes históricos!! Vou compartilhar!! Omedeto gozaimasu Francisco san!!

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